Chico Guanabara não é salvo-conduto para o Fluminense

O gol da vitória do "team" do Vasco sobre o Fluminense pelo placar de 2 a 1, a 17 de maio de 1925, no campeonato da AMEA / Foto: Site Memória Vascaína

Historiadores e/ou memorialistas do Fluminense Football Club afirmaram na web série “Herdeiros de Chico Guanabara”, que teve seu primeiro episódio no dia 20 de novembro de 2021 – Dia da Consciência Negra, que o Tricolor das Laranjeiras teve o “primeiro torcedor do futebol” e, como Mario Filho e Coelho Netto descreveram, este era negro e capoeirista. 

Por Leandro Fontes*

Antes de tocar no que considero fundamental, sem entrar no mérito do folclórico torcedor Chico Guanabara que merece ser lembrado pela literatura do futebol brasileiro, me parece que o título de “torcedor Nº 1 do futebol”, para que não haja indagações, deve estar sustentado sob a base de uma pesquisa – não sei se existe – minimamente documentada, com dados e elementos comparativos, contendo recorte temporal objetivo. Do contrário, tal afirmação não passará de uma narrativa clubística como tantas outras.

De todo modo, o ponto mais relevante e passível de debates no que compete ao conteúdo do primeiro episódio da presente web série, é a argumentação dos historiadores e/ou memorialistas do Fluminense que o Brasil da Primeira República era excludente e racista. Portanto, a sociedade reproduzia quase que de modo linear o racismo e todos os clubes também.

Alto lá, o Vasco em 1904, dezesseis anos após a abolição da escravatura, elegeu Cândido José de Araújo, o primeiro presidente negro dos grandes clubes do país. Que antes de se tornar presidente do clube passou por postos de comando do Vasco, como a tesouraria e a vice-presidência. E em 1905 foi reeleito para presidente do clube. 

Isto é, o Vasco que na década de 1910 era regido fundamentalmente para a prática do remo, tinha remadores brancos, mestiços e negros, assim como torcedores acompanhando as regatas com mesma característica. Mas, para além desse diferencial, o clube teve a grandeza pioneira, mesmo estando sob o regime oligarca e sob a ideologia segregadora da República Velha, de eleger no voto direto dos associados um negro, escrevente na Central do Brasil, para seu maior posto.

Isso significa que a Primeira República e a maioria das associações e dos clubes desportivos não eram racistas no Brasil? Pelo contrário. Por outro lado, esse fato conduz naturalmente o Vasco ao lugar antagônico dos clubes sociais e desportivos, como o Fluminense de Oscar Cox e da família Guinle, que reproduziam canonicamente o atraso e os preconceitos nefastos oriundos daquele tempo.  

Além disso, não se pode ocultar que na República Velha – assim como hoje – continha classes sociais e frações de classe. E, como regra, cada classe ou frações de classe constituía suas próprias associações e clubes. De tal maneira, o Fluminense FC se formou como um genuíno clube de poucos e para poucos, que agregava entre si, homens brancos de famílias ricas, que não trabalhavam ou que não faziam trabalhos braçais e que ostentavam valores e costumes aristocráticos da então Belle Époque tropical. Não é à toa que o Fluminense era um dos clubes com jóia e mensalidades mais caras do país. Ou seja, se um clube do subúrbio cobrava em média 1$000 por mês de mensalidade, o Fluminense cobrava mais de 5$000 por mês no início da primeira década do século XX. Na década seguinte esse valor subiu para 40$000 (SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia. A Revolução Vascaína. 2010).

Quer dizer, Chico Guanabara não estava “dentro” do seleto conjunto de tricolores de carteirinha que construíram a tradição do clube. Ao mesmo tempo, ele não poderia ser escorraçado das arquibancadas. Entretanto, Chico Guanabara não poderia ser parte do quadro social tricolor e tampouco participar dos requintados e elegantes bailes do Fluminense. Assim sendo, este torcedor folclórico que está ganhando justamente holofotes na memória tricolor reflete uma expressão particularmente contraditória, comum no esporte, de “fora” dos muros, do quadro social, dos valores e da tradição do clube das Laranjeiras.     

Portanto, o Fluminense Football Club tem todo o direito de reorientar seus valores e sua tradição, utilizando para esse fim personagens até então lateralizados de sua história e que tiveram somente o lugar de geraldinos e arquibaldos ou de empregados do clube. Mas, para tanto, deve contar a história por inteiro, sem ocultar fatos. Um bom começo seria uma autocrítica pública do papel reacionário que o clube cumpriu como co-responsável e formulador, ao lado de Botafogo, Flamengo e América, dos estatutos elitistas e racistas que conduziram o futebol carioca até 1933. Quando isto ocorrer, o Fluminense merecerá aplausos. Por hora, segue a crítica.  

* Sócio-proprietário do Vasco e autor da obra Vasco: o Clube do Povo – uma Polêmica com o flamenguismo (1923-1958)

9 comentários

  1. Parabéns pela ponderação, e sim com o forte perfil clubista. E Por quê não falar sobre Getúlio Vargas no auge Estado Novo, e o envolvimento com o clube Vasco da gama ? Ao mesmo tempo que foi palco para a implementação das leis trabalhistas na década de 1930, São Januário serviu como palco pra diversas discursos políticos do governo da época, simpatizante aos modelos fascistas da Europa. Isso também é omitido na sua opinião ?

  2. Eu concordo com boa parte do texto, mas eu queria saber que dia o Vasco e o vascaíno farão uma auto-crítica suficiente pra questionar em vocês próprios essa marca de clube antirracista “desde sempre”. Ora, vivemos num Brasil racista em 2023. Quem era antirracista 119 anos atrás? Será que em 1904 (ou 1898 ou 1923? – a data que queiram), um clube criado por portugueses, que recebeu o nome em homenagem a um dos escravagistas mais genocidas da nossa história, esse clube era antirracista? E desde os anos 40 é chamado de Heróico Português no hino. Fora a questão do amadorismo marrom, que fez o Vasco ficar contra a profissionalização do futebol. Quem tem, hoje, salvo-conduto é o Vasco e o vascaíno. Pelas ruas, na pista, nas esquinas, volta e meia se vê um vascaíno com opiniões controversas e questionáveis sem aceitar uma crítica sob o argumento de que torce pro time que lutou pelos negros. Esse discurso de vilanização de um clube (desde que Mario Filho inventou a historia do pó de arroz) e bestificação de outro, nao contribui em nada com a luta contra o racismo, sinceramente.

  3. Respeite o Fluminense Football Club.

    Com todo respeito ao Vasco da Gama e sua história belíssima, não podemos fechar os olhos e negar que outros clubes, apesar de suas mazelas, também tinham em seu quadro de funcionários e torcedores pessoas de todas as raças, generalizar e culpar a instituição Fluminense chega a ser mesquinho, o texto induz a todo momento que há uma discriminação endêmica dentro do Fluminense Football Club, o que gera uma certa repulsa inconsciente aos torcedores do clube, este texto é um grande desfavor ao futebol carioca e brasileiro, se fontes históricas como Coelho Netto e Mario Filho não são credíveis, quem são? Aqueles que são convenientes para manter essa narrativa de que o Fluminense é um clube racista, somente as fontes que me interessam são credíveis? Imparcialidade sem tamanho, o que é irônico, pois o texto acusa o Fluminense de revisionismo histórico e “clubismo”, olha o cisco no olho do outro e esquece da trave no próprio.

    Chico Guanabara moldou a ética tricolor nas arquibancadas, assim como Antonio González com a Força Flu, personagens históricos numa luta onde todos os clubes estavam inseridos, todos, sem exceção. Se deseja a verdade, ela está acessível na série “Herdeiros de Chico Guanabara”, procure e assista no YouTube, já que Mario Filho e Coelho Netto são indignos de sua tão “grandiosa sabedoria” acerca dos fatos históricos.

    Guarde esses ataques para seu clube de amigos e aprenda a defender e valorizar uma Instituição sem ser tão desrespeitoso com outra. Ao Vasco da Gama meus parabéns pelo pioneirismo, és verdadeiramente Gigante e ao Tricolor das Laranjeiras, o respeito pela sua grandeza e tradição, na qual são marcas eternas arraigadas no povo fluminense/carioca, ao Fluminense tudo.

  4. Faltou ver a série, irmão. “Herdeiros de Chico Guanabara” é duas coisas: 1) uma exaltação da torcida tricolor e seu caráter popular; 2) uma auto-crítica a essa imagem elitista e racista da nossa torcida. Isso é falado na série e as duas coisas tão bem evidentes.
    ST

  5. Perfeito o texto. Realmente, em um contexto histórico marcado pela recém-abolida escravatura, o Clube de Regatas Vasco da Gama era um verdadeiro oásis no meio de tanta discriminação. Parabenizo o autor pelas ricas pesquisas a respeito da idoneidade moral do Gigante da Colina. Orgulho de sermos os únicos jamais-racistas desse país!

  6. Como escreve o autor, se ainda fizessem autocrítica, demonstrariam um avanço. Por hora, a tentativa desonesta de construir uma narrativa que relativiza a sua história e a história de quem, de fato, lutou contra o racismo, só revela a condição aristocrata do clube.
    Não é novidade que a elite tente desqualificar ou igualar Zumbi, por exemplo, aos seus algozes. Aqui me refiro à esdrúxula tese inventada de que o mesmo possuía servos.
    O Vasco é o verdadeiro time do povo!
    Excelente texto! Parabéns!

    • O texto é muito bom, o Vasco realmente merece aplausos por sua história contra o racismo, e olha que sou um negro tricolor de coração, mas você querer dizer que zumbi não era um tirano é tão hipócrita como o Fluminense não querer contar o real início de sua história.
      Zumbi é um herói criado…

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